Quase bati o carro, ele caminhava com seus olhos tristes,
sujo e um tanto quanto em pânico, pelo jardim no centro da avenida.
Carros acelerados em uma cidade que dirigir é como uma
competição, quem dirige mais rápido, quem manobra mais rápido, quem ofende toda
a geração do outro motorista, motorista não é motorista, é inimigo e de morte.
-- Vai ser
atropelado – gritei, sozinho em meu carro, parei, acendi o alerta, corri até o
meio do jardim, ele tinha médio porte, poderia me morder, arrisquei chama-lo,
ele abaixou humildemente a cabeça e veio em minha direção.
-- E se ele
me morder? – Sua boca era grande, uma mordida machucaria um pouco, há momentos
que penso assim, não são para muita reflexão, tem que ser no impulso, na
coragem, se a gente pensa muito...não faz, passei a mão em sua cabeça,
conversei um pouco, sentei no chão ao seu lado, tudo muito rápido, tinha que
encontrar meus filhos, de súbito ele já estava em meu colo com o olhar um tanto
quanto preocupado.
Comeu a
vasilha inteiro de ração, anunciei-o na rede social, talvez poderia ser de uns
grandes condomínios próximos a minha casa.
-- Pai vou
passear com ele no condomínio.
-- Vai sim,
acho que ele vai gostar.
-- Pai, me
perguntaram se é de raça, se é filhote de labrador, acharam ele bonito.
-- Puxa, é
mesmo, não havia pensado nisso, ele parece um labrador não é?
-- Olha
diga que ele é um setter escocês.
-- Existe
essa raça?
-- Não, não
existe não, mas soa bonito não é? – Rimos um pouco olhando nosso “setter
escocês”.
Ele começou
a se soltar, sempre com seu olhar triste e humilde, estava com dificuldades
para limpar seu cocô, recolher aquela coisa enorme, causava engulhos, mas para
ele não fazer no quintal de casa, passei a leva-lo para passear pelas manhãs e
a noite.
-- Vamos
dar um nome para ele pai?
-- Eu não
acho boa ideia, a gente se apega e depois fica difícil deixar ele ir embora,
não se esqueça que o lar aqui em casa é passageiro para ele.
-- Pai vou
chamá-lo de Hannibal.
-- Bom, é o
oposto da personalidade dele, mas se você gosta... — rimos mais um pouco, dia
seguinte, mais anúncios na internet e fui passear com ele um pouco pelas ruas
do bairro, pois eu achava que o Hannibal tinha saído para dar uma volta de sua
antiga casa e tinha perdido-se pelo caminho. Caminhada sem sucesso, diga-se de
passagem.
Passamos a
ter uma rotininha com o Hannibal, ração pela manhã, coleiras novas, cama nova,
banho caprichado, consulta no veterinário, vermífugo, vacina, enfim, pacote
completo.
Andar pelo
condomínio em Rio Preto é meio complicado, o condomínio é em descida, então para
caminhar-se para a portaria, tem-se que encarar a pequena ladeira, com o
Hannibal não havia problema, pois o pequeno, digo médio, tem força, e subíamos
sempre com ele me puxando.
-- Cocô ai
não Hannibal, esse vizinho é um mala – O arrastei para outro lado, saquinho de
lixo estrategicamente no bolso, levei-o para a área comum do condomínio, e em
segundos tínhamos uma outra obra histórica e monumental do Hannibal, meus
engulhos de sempre, mãos agora carregadas, para levar sua obra para o lixo de
casa.
Outro dia, outra volta – mais devagar Hannibal – ele
me puxando e abanando o rabo – íamos subindo novamente o condomínio e eu
controlando sua marcha acelerada .
-- Senhor?
-- Diga
Moisés – Moisés é um dos vigias mais antigos do condomínio, daqueles moços
esforçados, trabalhadores e até que amigo, fico surpreso com a quantidade de
amigos que fiz com o povo mais humilde da cidade, acho que são pessoas sem
melindres, lutadores, humildes, a conversa vai fácil e começa então a amizade.
-- O senhor
assina o Diário não assina?
-- Sim
Moisés, assino sim.
-- Eu
queria ver uma reportagem da última quarta, será que o senhor tem?
-- Ah
Moisés, jornal em casa você sabe, da leitura para o chão, para a cachorrada,
mas vou ver, separo para você.
Moisés, você sabe alguém que queira um lindo cãozinho, médio
porte, excelente companheiro?
-- Onde
está o cãozinho?
-- É esse
aqui Moisés, ele é muito bonzinho, meu quintal é pequeno, não tem muito espaço
para ele, recolhi ele da rua, para ajudar o bichinho.
-- Ah
senhor, quero ele, moro em uma chácara, tem um terreno enorme, eu estava
procurando um bichinho – Abri um sorriso, afinal achei um lugar e me parecia um
lugar bom para o Hannibal.
-- Puxa,
você pode leva-lo então, tenho coleira, caminha, ração...—Fiquei feliz, afinal
consegui realmente achar um lar para o Hannibal
e um lugar em que ele estaria feliz.
-- Posso
leva-lo hoje? No final do meu turno passo de carro para pega-lo, só que saio as
seis da manha....
-- Não tem
problema, interfone e eu te aguardo.
-- Não
falei que ele era bonito Cássio ? – Seis e meia da manhã, eu meio sonado, sai
catando ração, cobertorzinho do Hannibal, cama... -- Cássio era o outro segurança
do condomínio.
-- Abaixou
o banco de trás Moisés? Deixa que coloco ele --ele olhou para mim com aquele seu
olhar inocente e amoroso e dessa vez confiando totalmente em mim.
-- Posso
dar um ultimo abraço nele? – Lógico que o senhor pode. Abracei ele e ele abriu a bocona, jogou a língua para
fora como se fosse um imenso sorriso, não contive as lágrimas, comecei a chorar
– Vai com Deus, Menino.
O carro
partiu, ele olhando pelo vidro traseiro, com aquele olhar de carinho e de
extrema confiança em mim, ele parecia dizer o seguinte “ Não sei para onde
estou indo, mas confio totalmente em você”. O dia ficou triste, mas por outro
lado eu me animava, afinal “Menino” (como eu particularmente o chamava) iria
para uma casa boa, com espaço e com
pessoas de bom coração.
-- Como esta
o “Menino”? – Perguntei ao Moisés, duas semanas depois.
-- Feliz,
que só vendo, corre para lá e para cá com meu outro cãozinho.
-- Ah! Tem
outro cãozinho, que coisa boa, companhia para ele, posso visita-lo qualquer dia
desses?
-- A porta
esta sempre aberta, é só o senhor me avisar. – Tenho as fotos do Hannibal ou Menino em meu celular, acho que nunca vou apagar.
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