-- Você só me procura para pedir dinheiro...— e me olhou
com aquele seu olhar altivo beirando a arrogancia, aquele seu olhar de olhos apertados e cheio de desdém, eu não conseguia ver a
imagem de um pai e um filho conversando naquele
momento... Ele estava bem vestido como sempre, sapatos pretos reluzentes, cabelos
engomados, sim na época não existia o gel, era a goma, a brilhantina, deixava
os cabelos perfeitos, bem alinhados, seu rosto era harmônico, rosto claro,
caucasiano, talvez da melhor estirpe europeia, ou melhor escandinava, pele
clara, olhos verdes, cabelos louros, perfeitamente engomados.
-- Mas é só pelo dinheiro mesmo, você é
meu pai, tem que cuidar de mim. Preciso ir ao dentista – Saí chutando tudo ao meu redor, pisando duro,
arfando, bufando...
De outra vez...—Tato, você anda
sempre mal vestido rapaz, compra uma roupa melhor, esta vendo esse sapato? Olha
bem...cromo alemão, uma nota. – Dessa vez não disse nada, a situação era tão
esdrúxula que não merecia comentário...
Nossa relação, de minha parte, era um misto de admiração e indignação,
admiração porque orgulhava-me principalmente sua beleza, o riso e a gargalhada
dos dentes grandes, o branco mais branco que poderia existir, suas roupas
sempre perfeitas, passadinhas.....olhava para ele e ao mesmo tempo pensava –
que grande canalha.
-- Tato no seu aniversário, acho que
vou te dar um relógio bem bonito de pulso... – Eu olhava e concordava, já não
levava mais a sério, eram tantas promessas que era a história de entrar por um
ouvido e sair pelo outro, eu não dava mais crédito, ele era assim um canalha bonachão,
uma serpente nos rodeando e hipnotizando os mais incautos.
-- Essa mulher é maravilhosa, não
conheço pessoa mais digna, mais forte que ela – era aniversário de minha mãe,
comprei bolo, refrigerante, salgados e lá estavam os amigos, olhei para ele com
meu olhar sério mas por dentro ria de mais uma canalhice de sua parte, mais uma
presepada, com aquele seu discursinho barato, lançando seu populismo de segunda
por onde quer que passasse.
Ele era assim e acho que morreu
assim, sua palavra não tinha palavra, ou melhor, não tinha crédito, era dita só
para agradar, só para angariar, para sequestrar nossa fé e nossos sorrisos.
Eu o admirei, admirei, pois queria
ser bonito como ele, queria ter seu sorriso, seus cabelos e na verdade
envergonhava-me de minha mãe com aquela sua beleza ora mulata, ora indígena...eu
não sabia definir ao certo, mas sabia apenas que ela me envergonhava com sua
risada espalhafatosa, sua fala errada, ela era bonita, sim tinha sua beleza mas
não tinha a beleza dele.
Por muitas e muitas vezes me culpei
e recriminei, pois quem estava sempre presente era ela, nas reuniões da escola,
onde meu desempenho era pífio, o dinheirinho para ir ao cinema sozinho nos
finais de semana, as roupas que ela ganhava e reformava imediatamente para mim,
e se tornavam belas calças e camisas que
pareciam saídas de uma loja, perfeitas em meu corpo.
Tivemos muitas idas e vindas, e’
claro, como todas as famílias, mas era ela quem sempre estava lá, de uma forma
que eu julgava correta ou de uma forma totalmente errada. Eu não gostava das
surras, mas quem iria gostar? Não gostava porque não era um mero corretivo, eu
sentia que as surras eram carregadas de um sentimento de revolta, de frustração
e eu ali parado a sua frente era a sua válvula de escape. Válvula de escape de
meu pai que não a amava e a havia
enganado, válvula de escape de sua família que passou a ignorá-la, válvula de
escape de sua condição pobre e entregue ao mundo, válvula de escape por saber
que havia um ser sob sua responsabilidade, assim como houve outros e que ela
não tinha a mínima noção ou condição de como cuidar.
-- Tato eu era jovem, desculpe-me,
eu errei mas sua mãe errou também – olhei para ele, e concordei com a cabeça,
eu queria era descer do carro, pensei que ele poderia ser um bom politico, um
bom advogado, era articulado, sempre aparecia com palavras diferentes,
mostrando que de certa forma era letrado, pelo menos para meu mundo limitado
culturalmente.
O
dia que ele falou a palavra “subterfúgio”, achei o máximo, corri para o
dicionário – sub ter fui gio: ser evasivo, usar de outros recursos –Puxa, essa
palavra quer dizer tudo isso? Rí um pouco procurando outras palavras no
dicionário.
Outro dia estava correndo, encontrei
com ele e um amigo, correndo pelas ruas do Jaçanã – Tato, vamos correr juntos?
– Olhei e pensei, porque será que ele nunca me convidou para fazer nada? –
Vamos, vamos sim , vamos correr aqui nesse conjunto residencial?
Saímos nós três correndo, uma volta
de um quilometro, duas voltas, três voltas... – Caramba Agenor, nós parecemos
um fusca e o Tato uma Mercedes, -- e
caiu na gargalhada, correndo tropegamente ao meu lado.
Olhei
confuso, quase soltei o comentário que – nem estava me esforçando – mas por
conta de minha discrição e culto a humildade fiquei quieto.
Ele era um anônimo simpático, nunca
fez questão de estar presente em nada e minha melhor decisão foi o dia que
decidi vingar-me de todas as desgraças que ele tinha feito comigo e minha mãe e
a vingança como já comentei outras vezes era trata-lo muito bem, não poderia
haver vingança melhor que essa.
-- Tato?
-- Sim?
-- Estamos aqui no hospital, o pai
não está bem... – Renato era meu meio irmão, nunca tivemos contato, apenas
sabíamos da existência um do outro.
Ele estava inconsciente, sua
aparência já não tinha vida, era uma aparência ausente, não havia nada de vida
presente alí, mas o terrível ao olhar para ele, era a indiferença que sentia a
toda aquela situação a minha frente.
Renato chorava, Neusa olhava com seu
olhar triste, silencio no velório, alguns militares segurando seus quepes de
cabeça baixa, curiosos, tio Hélio em um
canto conversando com mais um militar, a namorada de Renato e eu ali pensando
no meu treino de corrida, no ultimo vinil que havia comprado, pensando em minha
mãe, repassando alguns momentos importantes de minha vida em que ele
naturalmente não estava presente.
Eu pensava que talvez ele pudesse ter
me protegido quando encarava diariamente minha avó frente a frente com sua
fúria e seu chinelo, quando moramos por algum tempo na rua, quando enfrentei alguns professores sádicos,
ou quando tive meus primeiros problemas com a tal da matemática.
Mas quantos pais são ausentes nesse
mundo? Quantos pais são ausentes mesmo estando presentes? Será que a solidão
que carrego comigo mesmo estando sufocado de pessoas ao meu lado são de alguma
forma culpa de sua ausência? Será que é uma posição confortável para mim,
sempre culpa-lo por todo e qualquer fracasso que a vida me reservar?
Será que um dia irei perdoá-lo por
ter permitido que a vida levasse meus dois irmãos para longe de mim? Será? São
perguntas que acredito nunca terei a resposta.
--
Tato, sei que ele errou, ele era um moleque como você é agora, sei que
onde quer que ele esteja vai ficar feliz se você o perdoá-lo, disse-me uma vez
sua segunda esposa – Olhei em seus olhos, ela desviou o olhar, respondi – mas
eu já o perdoei Neusa, esta tudo bem.
Menti,
e saí caminhando pelas ruas arborizadas de Santana – Adoro esse bairro, um dia
quero morar aqui – olhava os raios de sol travessando as copas de algumas
árvores, esse era meu pensamento. Andava
devagar, um vento frio batia em meu rosto, enfiei as mãos no bolso, cobrí com
um cachecol meu nariz, repassei
mentalmente alguns momentos de minha vida, tinha uma certeza nesse momento,
nunca iria perdoá-lo, mas talvez eu poderia esquecer tudo... minha memória
sempre foi terrível, então, que minha memória e suas fraquezas levassem todas
as lembranças do que ele não foi um dia, de suas ausências e de duas mentiras. Quem sabe....
5 comentários:
Um cotidiano enfrentado por muitos por ai. Um relato emocionado e de um frescor arrebatador.
Wellington Bordinhon
Querido Altair! Mais uma vez, transformando sentimentos em palavras com maestria! É como se as palavras entrassem pelos poros e saíssem em forma de lágrimas...! Parabéns!
Meus amigos de sempre, um grande abraço.
Alltaaaaa
Graziiiiii queridaaaaaaaa
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