Memórias de viagem: Conversas com minha tia
-- Tato, é engraçado, estou com sessenta e dois anos e já
acham que estou velha, essa sociedade, povinho preconceituoso...eu gosto de
dançar, de rir e brincar como todo mundo, porque já querem matar e sepultar a
gente hem Tato?– Deu um belo trago em seu cigarro e escancarou a boca em uma
gargalhada enorme. Eu ficava irritadíssimo, não pelo fato de suas risadas
estrondosas, mas sua velha mania de completar uma sentença dando um leve tapa
ou empurrão em quem estivesse por perto. Só muito mais tarde, lá na frente em
minha vida fui entender que sempre consideramos “muito velho” e obsoleto quem
sempre é um pouco mais velho que a gente. – Porque será? – Pensei.
-- Liga não tia, você esta bem... –
Ela estava bem mesmo, lúcida, inteligente, sempre antenada com tudo, adorava o
Queen – Vamos no show do Queen, Tato? – A gente fica pulando lá a noite
inteira...”Love off my Life...” – saiu andando para a cozinha com seu
cigarrinho na ponta dos dedos.
Sempre que olhava para minha tia,
vinha `a minha lembrança um passado não muito distante, quando morávamos todos
juntos, feito ciganos, todos esparramados pela casa, meu tio Toninho sempre nos
educando, nos ensinando bons modos, mas aquele povo xucro de Várzea Grande,
Mato Grosso, parecia nunca entender nada de nada.
-- Tato, dança essa comigo, esse
Glenn Miller é o máximo não é? Quando o Ciro estava vivo, parávamos para dançar
essa música em qualquer lugar que tocasse. – Acendeu outro cigarro, pendurou em
sua boca, dos dentes enormes e lábios grossos e saímos dançando, eu meio
desengonçado, duro como uma porta, entre uma pisada e outra em seus pés e
algumas risadas, terminamos nossa dança.
-- Vou montar um quiosque na praia,
o que você acha? Encher esses turistas de cachaça boa, espetinho de camarão...—Não
gostava da enorme pinta bem ali no meio de seu rosto, um pouco acima do canto
esquerdo de seu lábio...Fiquei olhando bem para o seu rosto, aqueles olhos
enormes e alegres, seu nariz era um pouco grande eu achava, a pinta parecia
incomodar, mas seu sorriso sempre ali colado em sua face, sempre a deixou tão
bela, a mais bela de nossa família e como já falei mil vezes, tinha orgulho se
apresenta-la a meus amigos.
-- Tia, esse negócio de quiosque dá
trabalho, tem que levar comida e bebida sempre,
os fiscais da prefeitura controlam demais. -- Ela sentou no sofá agora,
esticou as pernas sobre a mesinha de centro, solas dos pés pretas pois só
andava descalça e colocou o disco do Glenn Miller novamente.
Tínhamos
passagens de vida interessantes, passagens maravilhosas, afinal ela esteve
sempre perto, até eu de certo modo declarar minha independência e me separar um
pouco da família. Lembrei da época do nascimento de minha prima Rosana, que
substituiu-me imediatamente como a protegida da casa, lembrei dos bailes todo o
final de semana, afastavam os móveis, recolhiam os tapetes e aos poucos
chegavam todos os amigos esquisitos de minha tia e meu tio Ciro.
Aquilo
atravessava a noite, James Brown, Marvin Gaye, Sister Sledge...todos dançando,
bebendo e descendo as escadas do sobrado de minha tia sempre aos trancos e
barrancos no final das festas. Sempre tive ciúmes dela com meu tio, mas isso
era segredo guardado a sete chaves, um sobrinho que achava o máximo sua tia,
quem iria entender?
-- Tato como estão as coisas entre
você, sua mãe e o Cidão hem? – Cidão era meu padrasto e eu estava na fase dos
hormônios a mil, brigava até com a sombra e não precisava ser só a minha sombra
não – Ah tia, você sabe, eles não concordam com nada, joguei fora o diário,
estavam lendo escondido, você acredita?
Ela caiu na gargalhada, achava sua
irmã (minha mãe) super quadrada, com ideias ultrapassadas, parada no tempo. Eu
pensava com meus botões em como ela podia ser tão antenada com tudo, vindo de
onde veio, do meio do mato.
-- Tato, um dia você vai entender,
pais e mães são assim, não querem que você cometa os mesmos erros que eles
cometeram, você vai ser assim meu querido.
-- Eu? – Exaltado – jamais tia, vou
educar e confiar nos meus filhos, não vou ser canalha como meu pai.
-- Tato, pega o baralho, vamos jogar
um pouco, joga buraco ou escopa?
-- Buraco eu não sei tia, pode ser
escopa? – comecei a embaralhar as cartas, tirei os sapatos e estiquei
espreguiçando meus braços. Bocejei umas duas vezes e olhei interrogativamente
para ela.
-- Sabe Tato, ser responsável por
uma vida é muito difícil e a gente aprende a educar, educando, não viu Roseli?
Apesar dos meus esforços ela é o que é, ainda bem que não mexe com drogas. –
Minha prima Roseli, concentrou em si mesma todo o temperamento forte da
família, aquela mistura de sangue índio com nordestino, com o pior da estirpe
europeia, então chamava encrenca por onde quer que passasse. – E tem a praga do
seu pai né Tato? Aí a Nhanhã se preocupa mais ainda, mas vou te falar uma
coisa, tu é um santo por aguentar sua mãe, que porre.—E soltou uma sonora
gargalhada.
Elas
nunca se deram muito bem, minha mãe a mais velha da família de cinco irmãos e
minha tia a caçula, minha mãe sempre via minha tia como a “mimada da casa”, com
privilégios que ela não tinha e por outro lado as piores coisas e tarefas da
família e da casa eram delegadas `a minha mãe.
-- E você meu querido, com seu
padrasto, como está? Figurassa o Cidão não e’? – Olhou para mim, percebi a
curiosidade extrema nesse seu olhar.
-- Tia, ele é boa pessoa, fuma e
ronca demais, cheira muito a cigarro, mas é boa pessoa.
-- Ah Tato, isso um bom banho
resolve, agora tem que prestar atenção, se cuida bem de sua mãe, se ajuda em
casa, se dá bom exemplo. -- Lembrei na hora das enrascadas que eu vivia me
metendo e de como ele, o Cidão com toda a sua paciência resolvia todos os meus
imbróglios, muito mais tarde fui perceber que na vida a gente precisa de bons
exemplos, sermões e pregações até ajudam, mas nada como uma postura exemplar,
lembrei também que o Cidão era de poucas palavras, mas era o melhor em qualquer
situação e nos defendia com unhas e dentes.
-- Tia? – o Cidão me deu um par de
abotoaduras de aniversário, coisa de velho, jamais vou usar isso, mas vou
guardar – Sorri um sorriso sem graça.
-- Lá vem você com essa história de
velho Tato, velho está na cabeça querido, quer brigar? – Ergueu os dois punhos
imitando um boxeador e olhou rindo para mim.
Ela gostava do Queen, Chico Buarque,
de umas cervejas, do cigarrinho infalível pendurado no canto de sua boca,
gostava de rir de tudo e de todos e certo dia ela se foi, se foi mais jovem do
que nunca, rindo como sempre.
Quando certo dia, liguei para um
amigo e ele estava chorando com quase setenta anos porque havia perdido o seu
amor, lembrei muito de minha tia e concluí mais uma vez que a vida está ai e
temos que vive-la e da melhor forma e da maneira mais alegre. Como disse certo
mestre uma vez, “esquecemos de brincar”, eu acrescentaria que “nos preocupamos
muito em chegar, mas esquecemos de curtir e aprender com a jornada e cada
detalhe pode ser visto de tantas formas e uma delas pode ser com alegria e com gratidão.
Minha
tia segue, acho que feliz, sorridente e em paz. Ah! seu nome era Leocides, horrível
não é? Mas na família era a alegre Tia Pequena.
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