quinta-feira, 18 de julho de 2013

Memórias de viagem: Conversas com minha tia












Memórias de viagem: Conversas com minha tia

-- Tato, é engraçado, estou com sessenta e dois anos e já acham que estou velha, essa sociedade, povinho preconceituoso...eu gosto de dançar, de rir e brincar como todo mundo, porque já querem matar e sepultar a gente hem Tato?– Deu um belo trago em seu cigarro e escancarou a boca em uma gargalhada enorme. Eu ficava irritadíssimo, não pelo fato de suas risadas estrondosas, mas sua velha mania de completar uma sentença dando um leve tapa ou empurrão em quem estivesse por perto. Só muito mais tarde, lá na frente em minha vida fui entender que sempre consideramos “muito velho” e obsoleto quem sempre é um pouco mais velho que a gente. – Porque será? – Pensei.
            -- Liga não tia, você esta bem... – Ela estava bem mesmo, lúcida, inteligente, sempre antenada com tudo, adorava o Queen – Vamos no show do Queen, Tato? – A gente fica pulando lá a noite inteira...”Love off my Life...” – saiu andando para a cozinha com seu cigarrinho na ponta dos dedos.
            Sempre que olhava para minha tia, vinha `a minha lembrança um passado não muito distante, quando morávamos todos juntos, feito ciganos, todos esparramados pela casa, meu tio Toninho sempre nos educando, nos ensinando bons modos, mas aquele povo xucro de Várzea Grande, Mato Grosso, parecia nunca entender nada de nada.
            -- Tato, dança essa comigo, esse Glenn Miller é o máximo não é? Quando o Ciro estava vivo, parávamos para dançar essa música em qualquer lugar que tocasse. – Acendeu outro cigarro, pendurou em sua boca, dos dentes enormes e lábios grossos e saímos dançando, eu meio desengonçado, duro como uma porta, entre uma pisada e outra em seus pés e algumas risadas, terminamos nossa dança.
            -- Vou montar um quiosque na praia, o que você acha? Encher esses turistas de cachaça boa, espetinho de camarão...—Não gostava da enorme pinta bem ali no meio de seu rosto, um pouco acima do canto esquerdo de seu lábio...Fiquei olhando bem para o seu rosto, aqueles olhos enormes e alegres, seu nariz era um pouco grande eu achava, a pinta parecia incomodar, mas seu sorriso sempre ali colado em sua face, sempre a deixou tão bela, a mais bela de nossa família e como já falei mil vezes, tinha orgulho se apresenta-la a meus amigos.
            -- Tia, esse negócio de quiosque dá trabalho, tem que levar comida e bebida sempre,  os fiscais da prefeitura controlam demais. -- Ela sentou no sofá agora, esticou as pernas sobre a mesinha de centro, solas dos pés pretas pois só andava descalça e colocou o disco do Glenn Miller novamente.
Tínhamos passagens de vida interessantes, passagens maravilhosas, afinal ela esteve sempre perto, até eu de certo modo declarar minha independência e me separar um pouco da família. Lembrei da época do nascimento de minha prima Rosana, que substituiu-me imediatamente como a protegida da casa, lembrei dos bailes todo o final de semana, afastavam os móveis, recolhiam os tapetes e aos poucos chegavam todos os amigos esquisitos de minha tia e meu tio Ciro.
Aquilo atravessava a noite, James Brown, Marvin Gaye, Sister Sledge...todos dançando, bebendo e descendo as escadas do sobrado de minha tia sempre aos trancos e barrancos no final das festas. Sempre tive ciúmes dela com meu tio, mas isso era segredo guardado a sete chaves, um sobrinho que achava o máximo sua tia, quem iria entender?
            -- Tato como estão as coisas entre você, sua mãe e o Cidão hem? – Cidão era meu padrasto e eu estava na fase dos hormônios a mil, brigava até com a sombra e não precisava ser só a minha sombra não – Ah tia, você sabe, eles não concordam com nada, joguei fora o diário, estavam lendo escondido, você acredita?  
            Ela caiu na gargalhada, achava sua irmã (minha mãe) super quadrada, com ideias ultrapassadas, parada no tempo. Eu pensava com meus botões em como ela podia ser tão antenada com tudo, vindo de onde veio, do meio do mato.
            -- Tato, um dia você vai entender, pais e mães são assim, não querem que você cometa os mesmos erros que eles cometeram, você vai ser assim meu querido.
            -- Eu? – Exaltado – jamais tia, vou educar e confiar nos meus filhos, não vou ser canalha como meu pai.
            -- Tato, pega o baralho, vamos jogar um pouco, joga buraco ou escopa?
            -- Buraco eu não sei tia, pode ser escopa? – comecei a embaralhar as cartas, tirei os sapatos e estiquei espreguiçando meus braços. Bocejei umas duas vezes e olhei interrogativamente para ela.
            -- Sabe Tato, ser responsável por uma vida é muito difícil e a gente aprende a educar, educando, não viu Roseli? Apesar dos meus esforços ela é o que é, ainda bem que não mexe com drogas. – Minha prima Roseli, concentrou em si mesma todo o temperamento forte da família, aquela mistura de sangue índio com nordestino, com o pior da estirpe europeia, então chamava encrenca por onde quer que passasse. – E tem a praga do seu pai né Tato? Aí a Nhanhã se preocupa mais ainda, mas vou te falar uma coisa, tu é um santo por aguentar sua mãe, que porre.—E soltou uma sonora gargalhada.
Elas nunca se deram muito bem, minha mãe a mais velha da família de cinco irmãos e minha tia a caçula, minha mãe sempre via minha tia como a “mimada da casa”, com privilégios que ela não tinha e por outro lado as piores coisas e tarefas da família e da casa eram delegadas `a minha mãe.
            -- E você meu querido, com seu padrasto, como está? Figurassa o Cidão não e’? – Olhou para mim, percebi a curiosidade  extrema nesse seu olhar.
            -- Tia, ele é boa pessoa, fuma e ronca demais, cheira muito a cigarro, mas é boa pessoa.
            -- Ah Tato, isso um bom banho resolve, agora tem que prestar atenção, se cuida bem de sua mãe, se ajuda em casa, se dá bom exemplo. -- Lembrei na hora das enrascadas que eu vivia me metendo e de como ele, o Cidão com toda a sua paciência resolvia todos os meus imbróglios, muito mais tarde fui perceber que na vida a gente precisa de bons exemplos, sermões e pregações até ajudam, mas nada como uma postura exemplar, lembrei também que o Cidão era de poucas palavras, mas era o melhor em qualquer situação e nos defendia com unhas e dentes.
            -- Tia? – o Cidão me deu um par de abotoaduras de aniversário, coisa de velho, jamais vou usar isso, mas vou guardar – Sorri um sorriso sem graça.
            -- Lá vem você com essa história de velho Tato, velho está na cabeça querido, quer brigar? – Ergueu os dois punhos imitando um boxeador e olhou rindo para mim.
            Ela gostava do Queen, Chico Buarque, de umas cervejas, do cigarrinho infalível pendurado no canto de sua boca, gostava de rir de tudo e de todos e certo dia ela se foi, se foi mais jovem do que nunca, rindo como sempre.
            Quando certo dia, liguei para um amigo e ele estava chorando com quase setenta anos porque havia perdido o seu amor, lembrei muito de minha tia e concluí mais uma vez que a vida está ai e temos que vive-la e da melhor forma e da maneira mais alegre. Como disse certo mestre uma vez, “esquecemos de brincar”, eu acrescentaria que “nos preocupamos muito em chegar, mas esquecemos de curtir e aprender com a jornada e cada detalhe pode ser visto de tantas formas e uma delas pode ser com alegria e com gratidão.
Minha tia segue, acho que feliz, sorridente e em paz. Ah! seu nome era Leocides, horrível não é? Mas na família era a alegre Tia Pequena. 

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