segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Diário de Viagem - Tia Pequena




          
Diário de Viagem - Tia Pequena

Sempre perguntei a minha família porque a chamavam de Pequena, afinal sua estatura era o padrão de toda mulher brasileira,  nunca me responderam, talvez Pequena por ser a caçula de oito irmãos, essa explicação me satisfez e com ela eu segui adiante tocando minha vida.
            Lembro dos tremendos rachas entre ela e minha mãe, o fato de ser a preferida de minha avó a enchia de poderes na família, afinal minha avó era quem ditava o que era  certo e errado naquela família humilde e de uma ingenuidade sem limites. Tâo ingénua que tio Ditino amarrou a corda que segurava o boi certa vez em seu dedâo para mostrar o quanto era forte e la se foi o boi correndo arrastando a corda com o dedâo de meu tio em sua ponta.
            A vez que minha mãe surrou tia Pequena, eu assisti horrorizado mas no final das contas dei razão a minha velha, afinal tia Pequena aproveitando da presença de minha avó tinha passado dos limites, e passou um limite perigoso, tirar minha mãe do sério era algo pior que cutucar a onça com vara curta, era liberar alguma praga ou furacão, com certeza tudo a frente e ao redor seria levado pela fúria de dona Andrelina.
            Contudo, excluindo o ir e vir das desavenças de família a beleza de minha tia era algo que vinha de dentro, sua alegria, seu sorriso e seu compromisso em estar sempre de bem com a vida e com todos realmente era contagiante.
            -- Tato, vamos fazer mais um baile no sábado, vem aqui dançar com a tia, deixa sua mãe chata em casa – tio Ciro olhava de canto e sorria, haviam acabado de casar, ele um negro estilo Marvin Gaye e  tia Pequena tinha lá seus vinte e sete anos de muita alegria, muitas festas e muito laque em seus cabelos.
            Eu olhava e sorria, era um observador profundo mas de presença muda, tinha muito cuidado com o que falava em todo o lugar, afinal em uma família de interioranos mato-grossenses uma criança era apenas um bichinho para alimentar-se até que ele pudesse ajudar em casa para pagar o seu sustento.
            Tio Ciro ganhava bem e colecionava seus robes, eu achava o máximo alguém usar um robe e sentar em uma poltrona com as pernas cruzadas, acreditava cegamente que meu tio deveria ter o melhor emprego do mundo, sempre perfumado, unhas bem cuidadas, sapatos brilhantes, assobiando Simonal e obviamente de robe sua marca registrada.
            Toda sexta-feira ou sábado era dia de baile na casa de meus tios, afastavam-se os móveis, espalhavam-se as caixas de som, minha tia preparava os salgados e aos poucos iam chegando os amigos, cada um com uma garrafa de  uísque ou tequila embaixo do braço, o ie-ie-ie mesclava-se ao mainstream, então íamos das manjadas músicas do Ray Conniff, Glen Miller a Beatles, James Brown, Wilson Simonal, Renato e seus Blue Caps, mas a trilha sonora de verdade eram as gargalhadas de minha tia e meu tio sempre ao seu lado como um príncipe consorte, rindo de suas brincadeiras e palhaçadas.
            Sempre pensei em como ela conseguia manter-se alheia ao inferno que era nossa família, envolta em conflitos e brigas permanentes.
            -- Tato, pega coca-cola moleque, se mexe o bocoió – dizia gargalhando e abraçando meu Tio Ciro, ir a casa de minha tia era fugir um pouco de nosso universo de grana curta, contar moedas, e calcular-se o que ia comer durante toda a semana pois exagerar em uma refeição significava que a próxima teria que ser pulada.
            Minha tia sempre morava em belas e boas casas, isso também contradizia a vida do restante da família que morava em casas humildes e levava vidas espartanas, a imagem de meu tio contando bolos de dinheiro nunca saía de minha mente.
            Adorava ve-la dançar, rir, sorrir, gargalhar como se o mundo resumisse a isso, os bailes de sextas e sábados a noite.
            -- Tio o dia que eu casar, quero casar com essa música.
            -- Qual música Tato? Essa do James Brown? – Disse com um sorriso de canto de boca meio desconfiado --  Essa mesma tio... – Tio Ciro caiu na gargalhada – Tato, acho que o padre não iria deixar, imagina a noiva entrando na igreja tocando “sex machine”?
            -- Qual o problema tio? A música e’ bonita... – Olhou para mim novamente, pegou seu cachimbo na escrivaninha do lado, encheu de seu fumo achocolatado, acendeu e saiu rindo e dançando com o braço esquerdo esticado como se dançasse e segurasse uma mão e a outra mão espalmada no peito, Glen Miller tocava um de seus clássicos...
            A relação de minha mãe com minha tia fui percebendo no decorrer de minha vida que era essa relação de amor e ódio, uma hora estavam juntas rindo, comendo, passeando, então a fase seguinte era a fase obscura, sem contatos, sem noticias e sem nenhuma menção do nome de uma ou outra.
            Bom, acostumei-me com o tempo com toda essa relação turbulenta, com o decorrer do tempo e de vários bailes ganhei uma prima, a prima Rosana, que me irritava em alguns momentos pois ela passou a ser o centro das atenções, eu já beirava uns nove ou dez anos de idade.
            -- Manda o Tato lá pra casa Nhanhá, pra ele brincar com a Rosana enquanto limpo a casa – Eu odiava esse tipo de solicitação de minha tia, afinal um garoto de dez anos cuidar de uma bebe de um ano de idade era o pior castigo que esse garoto poderia esperar.
            -- Compra sorvete Tato, para você e para a Rosana – e lá ia eu pela enésima vez cumprir uma missão na mercearia do bairro, mas como marcava na caderneta eu adicionava alguns doces por conta para comer escondido depois em minha casa.
            Em minha adolescência, minha tia era o porto seguro, quando minha avó passava em casa com seu incrível poder de criar um tumulto geral e de lançar um contra o outro não deixando pedra sobre pedra em minha casa eu corria para a casa de minha tia, quando eu queria conversar com alguém mais velho que pudesse me explicar as minhas duvidas mais absurdas do mundo, lá ia eu novamente para a casa de minha tia ou mesmo quando eu queria filosofar, conversar sobre música, o lugar era a casa de minha tia.
O assunto com ela ia de Nietzsche a Queen em um piscar de olhos e ela sempre conhecia e tinha uma opinião sobre tudo.
            -- Tato, vamos no show do Queen, estou louca para ir, a gente senta lá na primeira fileira – meu tio olhava de rabos de olhos e quando ela virava as costas fazia sinal com o indicador em círculos querendo dizer que ela era maluca.
            Olhava para minha tia e pensava o quão gostaria de te-la como mãe, descolada, culta, antenada...em minha visão de adolescente tudo isso somado a sua beleza a tornava perfeita.
            As coisas de certa forma desmoronaram o dia em que todas as confidencias levadas a minha tia, todos os meus segredos foram entregues de bandeja  a minha mãe, durante um bom tempo cortei relacionamentos e minha tia parecia não entender.
            -- Tonho como ela pode ter feito isso? Eu confiava nela...—Tonho era o melhor amigo e sempre tinha uma resposta boa para qualquer pergunta, desde as dúvidas existências às perguntas mais inconsequentes – Larga a mão Almeida, vai ver escapou, sua tia e’ super amiga sua.
            -- Tia você esta fumando demais – Ela já morava em sua casa em Itanhaém, uma pequena e bela casinha, segundo ela comprada por Rosana.
            -- Liga não Tato, disse ela gargalhando, bora para o vizinho que esta fazendo um churrasco maravilhoso, olha esta ouvindo, esta tocando até Raul Seixas.
            -- “Ói, ói o trem...” – Dança essa do Raul com a tia Tato? – saímos girando no quintal da casa do vizinho rindo escancaradamente.
            -- Primo?
            -- Oi Rosana.
            -- Minha mãe esta mal primo, acho que não passa dessa semana.
            Dois dias depois...-- Ela se foi primo, aconteceu hoje.
            (silencio profundo) Não sei o que dizer Rosana, tia Pequena é a minha tia mais querida, desculpe estou tâo longe, não consigo ir até ai agora.
            -- Imagina primo, sei que você esta longe, nem ia dar tempo, tome cuidado com o que vai dizer a sua mâe.
            -- Fica em paz prima, tenho certeza que ela esta melhor agora.
            -- "Ói, ói o trem", filho tem um especial do Raul na tv, vou gravar para você conhecer. Minha tia se foi filho, lembra dela?
            -- Lembro sim pai, lembro dela alegre rindo com a gente em sua casa...

2 comentários:

Anônimo disse...

Tornei-me fã da tia Pequena, ela era fã do Raul :)
Adorei o texto, como sempre lhe digo, você é um excelente cronista, Alta! Bom dia.

Eliane

Unknown disse...

Querida LI, muito obrigado, o blog a inspiracao sobrevivem por conta de pessoas tao queridas como voce, smack.