sábado, 11 de janeiro de 2014

Ele e ele






                 De um lado as garrafas de plástico, dois litros, um litro, ali já foi liquido, ali já se saciou muita sede, tudo despencado para um lado e para o outro, assustador.  Pilhas e pilhas de papelão, tudo desencontrado, papelão misturado a plástico, a latas, como coração de todo mundo, pilhas e pilhas de plástico e sonhos desencontrados.
            Chão de terra batida, não poderia ser diferente, onde o sonho se faz ausente, onde pilhas e pilhas de tudo o que há por ali rende apenas alguns trocados para os carrinhos que chegam lotados todos os dias de forma trôpega, forma suada e trôpega.  – Ai meu Deus, ai meu Deus, ainda leva um pequeno e esfomeado cãozinho a tiracolo, a língua lambendo o chão de sede e meu coração rachando ao meio vendo montes e montes de desilusão.
            Ele deu falta dele, é redundante eu sei, mas é o que aconteceu. Ele estava todos os dias deitado bem ali, encima do engradado de madeira. Todo o santo dia, estava ele com a língua de fora, arfando feliz, o riso vinha lá de dentro, a felicidade vinha lá de dentro e saia nos respingos de sua língua comprida e na marcha acelerada de seu arfar.
            Ritual é sempre o mesmo – Senão não seria ritual, não é verdade? – ele passa as sete horas da manhã, bolsa pesada nas costas e olha para ele, ambos sorriem. O que esta deitado no alambrado sorri um riso descompromissado, como se apenas dissesse “bom dia”, o que passa caminhando para o trabalho sorri um riso interessado, pois fica feliz com a felicidade do outro.
          Faça sol, faça chuva, ambos sorriem, ambos cumprimentam-se, os carrinhos carregados e desesperados por dinheiro – E quem não quer dinheiro, penso eu? – começam a chegar, começam a partir.
            Houve briga lá na frente – O que será que aconteceu? – Ele olhou para o rosto de sua irmã, ambos fechados em sua casa, cinco ou seis casas a frente, olhavam pelas grades, grades de verdade, as coisas são assim, grades na prisão, grades nas casas, grades e a solidão.
            -- O dono esta gritando? Parando todos os carros na rua. O que será que aconteceu?
            -- Chama a polícia, ele está gritando no meio da rua.
            -- Não, não chama a polícia, o dono é um pobre bêbado  e drogado.
            Ambos olham-se, mais um olhar triste e de conformismo, só que dessa vez um pouco assustado. Ele volta para a tv e para o computador, ela vai lavar o quintal, afinal lavar o quintal todo o dia é deixar tudo cheiroso, para o mau cheiro deixado pela Laika.
            -- Amanhã é dia de banho na Laika, dia de petshop...—Ambos riem, a senhora Laika de 15 anos ficará feliz.
            Dia seguinte, ele passa e ele não está lá, o engradado de madeira não está lá, naquele reino de plástico, papelão, lata e montes de lixo falta alguém. Alguém que era um guardião daquele reino, postado bem na porta de entrada.
            Passa mais um dia, passa mais outro dia e ele não esta lá. Ele preocupa-se, ele desespera-se. – Será que morreu? Foi sequestrado? Abandonado? Deus...
            No quarto dia ele não resiste, o dono está lá, mesinha trôpega no meio dos montes de garrafas que poderiam ser alguma instalação de arte em qualquer bienal de arte pelo mundo, mas são apenas recicláveis vendidos a preço de miséria naquele lugar.
            -- Senhor desculpe e seu cão e, o pequeno cãozinho que ficava sentado bem ali na frente? – Ficou com receio, não sabia qual resposta esperar, afinal o que seria de sua conta nessa história, a não ser a pequena alegria que aquele pequeno causava aos seus olhos toda a manhã.
            -- Pastor alemão, ele parece pastor alemão, não é tão grande como, mas parece – pensou baixinho.
            -- Ah! Foi atropelado, atropelaram, fratura exposta, atropelaram e fugiram. – Ambos trocaram olhar triste, mas um estava menos triste, afinal soube que ele estava vivo.
            -- Atropelaram e fugiram, uma covardia, tem que por tartarugas na rua  -- riu-se sozinho, tartarugas de verdade causariam possivelmente mais estrago.
            -- Pois é, atropelaram e não prestaram socorro, fratura exposta, mas ele esta bem , esta internado, logo esta de volta.
Cumprimentaram-se, uma pequena reverencia, o dono do ferro-velho sorriu, afinal não entendia a preocupação -- ´E só um cão... – pensou.
            Ele saiu caminhando feliz, o ônibus atrasou aquele dia, chegaria atrasado ao trabalho, tinha que cuidar dessa situação, os atrasos estavam reincidentes, enquanto assobiava, pensava que seu amigo estava bem, logo o veria ali deitado no engradado, babando e dando suas latidas, mostrando sua felicidade ele estava feliz, pois ele era seu amigo e não era apenas um cão.



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