De
um lado as garrafas de plástico, dois litros, um litro, ali já foi liquido, ali
já se saciou muita sede, tudo despencado para um lado e para o outro,
assustador. Pilhas e pilhas de papelão,
tudo desencontrado, papelão misturado a plástico, a latas, como coração de todo
mundo, pilhas e pilhas de plástico e sonhos desencontrados.
Chão de terra batida, não poderia
ser diferente, onde o sonho se faz ausente, onde pilhas e pilhas de tudo o que
há por ali rende apenas alguns trocados para os carrinhos que chegam lotados
todos os dias de forma trôpega, forma suada e trôpega. – Ai meu Deus, ai meu Deus, ainda leva um
pequeno e esfomeado cãozinho a tiracolo, a língua lambendo o chão de sede e meu
coração rachando ao meio vendo montes e montes de desilusão.
Ele deu falta dele, é redundante eu
sei, mas é o que aconteceu. Ele estava todos os dias deitado bem ali, encima do
engradado de madeira. Todo o santo dia, estava ele com a língua de fora,
arfando feliz, o riso vinha lá de dentro, a felicidade vinha lá de dentro e
saia nos respingos de sua língua comprida e na marcha acelerada de seu arfar.
Ritual é sempre o mesmo – Senão não
seria ritual, não é verdade? – ele passa as sete horas da manhã, bolsa pesada
nas costas e olha para ele, ambos sorriem. O que esta deitado no alambrado
sorri um riso descompromissado, como se apenas dissesse “bom dia”, o que passa
caminhando para o trabalho sorri um riso interessado, pois fica feliz com a
felicidade do outro.
Faça sol, faça chuva, ambos sorriem,
ambos cumprimentam-se, os carrinhos carregados e desesperados por dinheiro – E
quem não quer dinheiro, penso eu? – começam a chegar, começam a partir.
Houve briga lá na frente – O que
será que aconteceu? – Ele olhou para o rosto de sua irmã, ambos fechados em sua
casa, cinco ou seis casas a frente, olhavam pelas grades, grades de verdade, as
coisas são assim, grades na prisão, grades nas casas, grades e a solidão.
-- O dono esta gritando? Parando
todos os carros na rua. O que será que aconteceu?
-- Chama a polícia, ele está gritando
no meio da rua.
--
Não, não chama a polícia, o dono é um pobre bêbado e drogado.
Ambos olham-se, mais um olhar triste
e de conformismo, só que dessa vez um pouco assustado. Ele volta para a tv e
para o computador, ela vai lavar o quintal, afinal lavar o quintal todo o dia é
deixar tudo cheiroso, para o mau cheiro deixado pela Laika.
-- Amanhã é dia de banho na Laika,
dia de petshop...—Ambos riem, a senhora Laika de 15 anos ficará feliz.
Dia seguinte, ele passa e ele não
está lá, o engradado de madeira não está lá, naquele reino de plástico,
papelão, lata e montes de lixo falta alguém. Alguém que era um guardião daquele
reino, postado bem na porta de entrada.
Passa mais um dia, passa mais outro
dia e ele não esta lá. Ele preocupa-se, ele desespera-se. – Será que morreu?
Foi sequestrado? Abandonado? Deus...
No quarto dia ele não resiste, o
dono está lá, mesinha trôpega no meio dos montes de garrafas que poderiam ser
alguma instalação de arte em qualquer bienal de arte pelo mundo, mas são apenas
recicláveis vendidos a preço de miséria naquele lugar.
-- Senhor desculpe e seu cão e, o
pequeno cãozinho que ficava sentado bem ali na frente? – Ficou com receio, não
sabia qual resposta esperar, afinal o que seria de sua conta nessa história, a
não ser a pequena alegria que aquele pequeno causava aos seus olhos toda a
manhã.
-- Pastor alemão, ele parece pastor
alemão, não é tão grande como, mas parece – pensou baixinho.
-- Ah! Foi atropelado, atropelaram,
fratura exposta, atropelaram e fugiram. – Ambos trocaram olhar triste, mas um
estava menos triste, afinal soube que ele estava vivo.
-- Atropelaram e fugiram, uma
covardia, tem que por tartarugas na rua
-- riu-se sozinho, tartarugas de verdade causariam possivelmente mais
estrago.
-- Pois é, atropelaram e não
prestaram socorro, fratura exposta, mas ele esta bem , esta internado, logo
esta de volta.
Cumprimentaram-se,
uma pequena reverencia, o dono do ferro-velho sorriu, afinal não entendia a preocupação
-- ´E só um cão... – pensou.
Ele saiu caminhando feliz, o ônibus atrasou
aquele dia, chegaria atrasado ao trabalho, tinha que cuidar dessa situação, os
atrasos estavam reincidentes, enquanto assobiava, pensava que seu amigo estava
bem, logo o veria ali deitado no engradado, babando e dando suas latidas,
mostrando sua felicidade ele estava feliz, pois ele era seu amigo e não era
apenas um cão.
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