-- Leco, encosta mais, esta muito frio aqui – ele olhou com aquele olhar repleto de amizade e compaixão e começou a arfar rapidamente e a latir, Tina olhou para Leco, abanou sonolentamente o rabo e voltou a dormir.
A
noite era fria, eu chorara um pouco, pois quando caí no poço, ralei-me um
pouco, mas não sentia dores maiores que os ralados, apenas, sabia que minha mãe
a essa altura estava desesperada.
-- Leco, vem menino, encosta mais –
Eu estava grudado em Tina que tremia muito naquela noite gelada, abracei-a, ela
gemeu baixinho e parou um pouco de tremer. Os pernilongos nos picavam por todos
os lados, então, não tinha jeito não conseguíamos dormir.
Quando
fomos morar de favor na casa de Isadora, amiga de minha mãe, amiga fiel desde
sua chegada a São Paulo, eu, Tina e Leco nos apaixonamos imediatamente, eu
pegava nacos de carne e algumas sobras gostosas como pães e biscoitos e sempre
jogava por baixo da mesa, minha tática estava um tanto quanto manjada, pois
todos sempre ficavam de certa forma me vigiando nas refeições.
Viver na casa de Isadora, foi um
intervalo como a chegada a um oásis em nossas vidas, deixamos temporariamente
de perambular a esmo pela cidade desde a expulsão de minha mãe da casa de minha
avó e ainda não havíamos iniciado nossa vida independente em nossa casa de
cozinha de chão pisado no Piqueri.
A casa de Isadora ficava lá no
Jardim Brasil, bairro onde a criminalidade era o fundo normal do cotidiano de
todos, então tiros constantes, brigas pelos motivos mais banais, batidas
constantes da policia eram a rotina de todos os dias. Isadora em meio a esse
cenário tinha sua casinha aconchegante, com um pequeno jardim na frente, um pé
de jabuticaba e um de pitanga na parte de trás e um papagaio que alternava os
assobios com alguns palavrões ensinados pacientemente por Isadora.
-- Mas ele fala um monte de nome
feio Isa, e se tiver visita? – Isadora riu e respondeu – quem sabe as visitas
ensinam algum palavrão novo para o Bicudo, né Nhanha? – Minha mãe começou a rir
também, aquela sua risada, que parecia uma sucessão de gemidos e que sempre
terminavam com um “misericórdia meu pai”.
Acho que eu tinha uns cinco anos,
então, talvez pela idade, talvez por minha natureza, eu era um profundo
observador e nunca conseguia conversar com adultos, achava-os chatos,
complicados, mas, com Tina e Leco eu conversava e contava tudo o que vinha a
minha mente, todas as minhas histórias, todos os meus sonhos, minhas esperanças
e eles sempre retribuíam com aquele seu olhar generoso e cheio de amor.
-- Pega Leco, pega...e lá ia Leco
correndo com Tina a seu lado buscar qualquer coisa que eu jogasse, voltava todo
feliz, estendia o objeto da busca a meus pés, ficava em pé e começava a me
lamber.
-- Leco, você está muito fedido –
disse certa vez e o empurrei bruscamente com toda a força de um garoto de cinco anos – naquele dia Leco ficou
distante por mais que o chamasse, ele aninhou-se no meio dos bambus em frente a
casa de Isadora e não saiu de lá, aquele dia quando deitei chorei um pouco,
pois não queria perder meu amigo, mas nada como uma boa noite de sono, no dia
seguinte acordei com as lambidas de Leco e os latidos felizes de Tina.
O tempo que moramos na casa de
Isadora, minha mãe conseguiu seu primeiro emprego na “Malharia da Dona
Chandra”, como ela dizia, então, como
ela recebia seu salario toda a sexta-feira, com certeza as sextas – feiras era
dia de comer pudim que ela trazia da padaria.
-- Filho, qualquer hora dessas vou
te levar para conhecer o Zézinho, um moço tão bonzinho lá da malharia. –
realmente ele era bonzinho, no dia que eu o conheci, ele me levou para almoçar
naqueles “por quilo” que já eram moda na época, foi quando eu comi muito e ele
ficou surpreso em como devorei a salada em meia dúzia de garfadas. Achei ótima
a situação, aprendi então que as travessas de acompanhamento em qualquer
refeição tem que ser servidas aos poucos e não viradas completamente no nosso
prato como eu fiz.
Lembrei então que minha mãe sempre
foi muito rigorosa com a educação apesar de nossa pobreza, mas não tinha jeito
algumas coisas ia ter que aprender sozinho, observando as pessoas que eu
julgava humanas, educadas, grandiosas.
-- Leco, menino, vem aqui, eu tiro a
camiseta e você veste – arranquei a camiseta, tinha começado a chorar,
começaram alguns sons noturnos, eu achava que eram uivos, uma lagarta passeava
pela parede, eu morria de medo e não sabia o que era pior se os pernilongos que
pareciam atacar em hordas ou o frio que parecia congelar nossos corpos.
Leco
era mais forte, colava-se a mim, Tina gemia e seu gemido incomodava-me mais que
o frio e os pernilongos, meus dois maiores amigos estavam sofrendo e eu não
sabia se iríamos sair dali, sair daquele buraco fundo, escuro e úmido.
Passamos a noite assim, alternava
meus choros, com gritos tímidos de “socorro”, abraçava forte Tina e Leco, o
buraco que caímos minava agua e aos poucos ficamos molhados também. Após aquela noite de mordidas constantes de
pernilongos, cochiladas curtas e gemidos constantes de Tina, o dia começava a
nascer. A luz do sol incomodava meus olhos, seu brilho começou a nos aquecer,
minha primeira reação foi sacudir Tina e Leco, eles tinham que estar bem.
-- Leco, Leco, Leco...Tina, Tina...
– foi quando meu coração, encheu-se de alegria, Tina soltou um pequeno gemido e
rapidamente soltou sua língua enorme para fora da boca e começou a pular ao meu
lado e Leco por sua vez começou a pular, abanar o rabo e latir, comecei a
chorar de alegria, afinal meus dois amigos resistiram comigo e apesar de não
entender muito de nada, senti-me naquele momento como meu herói a época, o
National Kid, que não tinha medo de nada e enfrentava qualquer parada. Pensei
por algum tempo que iríamos morrer ali, apesar do sol que entrava e iluminava
uma pequena parede daquele grande buraco, apesar do canto dos pássaros lá fora
que possivelmente eram quero-queros, os pássaros que aprendi a amar aquela
época e que simbolizavam a força para mim.
De repente tudo voltou a silenciar
novamente, lembrei do filme que tinha assistido aquela semana, na tv preto e
branco de Isadora, era “Robinson alguma coisa” não lembrava ao certo, mas
contava a vida de um homem muito forte que viveu durante muito tempo sozinho em
uma ilha.
Em
minha cabeça de um garoto de cinco anos de idade, enchi meu peito, cocei um
pouco os caroços das mordidas de pernilongo, nos braços, nas pernas e na
barriga e pensei – Vou ter que cuidar de Tina e Leco, para sempre, mas como
nesse buraco? – Pensei que se começasse a cavar sem parar quem sabe um dia
chegaria a algum lugar, pensei em como faríamos se mal conseguíamos nos mexer
nesse buraco, pensei no que comeríamos pois estava com fome, pensei novamente
em minha mãe, quem iria protege-la e comecei a chorar novamente. Tina e Leco
começaram a me lamber e sem perceber cochilei novamente.
-- Aqui! Aqui! Ele esta aqui! Aqui...
– Era uma voz de homem, que começou sozinha e aos poucos as vozes foram
aumentando, eu conseguia perceber vozes de adultos, vozes de mulheres, vozes de
crianças e de repente a voz de minha mãe intercalada por choros desesperados.
Os homens do carro enorme vermelho
descobri mais tarde que eram bombeiros, eu havia rezado grande parte da noite
para o Nacional Kid aparecer, mas com o tempo descobri que eram tão heróis
quanto meu herói preferido.
Um
dos momentos mais felizes de minha vida foi quando minha mãe me agarrou e
abraçou, em minha cabeça eu voltaria a protege-la novamente, quando na verdade
fui descobrir um pouco mais tarde, era ela quem me protegia.
Passei
por um festival de abraços e beijos e os bombeiros com suas mãos grossas e
pesadas fizeram questão de todos passarem a mão em minha cabeça.
Tina e Leco latiam e pulavam em uma
alegria incontrolável, aquela manhâ minha mãe caprichou no mingau de fubá e no
meu pão caseiro. Aos poucos todos se foram, o carro enorme dos bombeiros, os
vizinhos, as aves silenciaram acho que afugentadas por toda aquela agitação,
Leco deitou em seu cantinho preferido próximo a escada de entrada e Tina
aninhou-se em uma cadeira. Isadora caprichou no almoço, a temperatura caiu na
parte da tarde, ficamos ali bem juntinhos, eu, minha mãe e Isadora, contando
historias de medo e rindo um pouco.
Tina e Leco ganharam novo status na
casa, passaram a ser tratados com todo o amor possível e ficamos cada vez mais
inseparáveis.
Na parte da tarde naquele dia, após
assistirmos “Perdidos no Espaço” na tv, peguei dois de meus carrinhos
preferidos e deixei um na cama de Tina e outro na cama de Leco, afinal eles
eram meus melhores amigos e havíamos passado por uma barra pesada juntos.
-- Tato, achei na banca o livrinho
novo da coleção da Disney... – Gritou minha mâe, entrei correndo e sorrindo, era a historia do
Peter Pan e esse “cara” parecia ser tão bom quanto o Nacional Kid.
5 comentários:
Me encantei, moço! Muito.
Amei.... que coisa linda!!!
Tudo de bom, Luciane Castiglioni
Obrigado, um abraço a todos.
lindo... lendo e vivendo junto...como é bom conseguir passar sentimentos para o papel. Beijos!
Ayakooooooooooo, grato pela presenca, amiga querida de muitos anos. um abraco.
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