sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Confie em mim




-- Confie em mim, dá a sua mão – gritou bem forte – dá a sua mão, bem que eu disse que esse ultimo grampo não estava bem fixo, por isso o cabo rompeu – o sol iluminava com seu dourado toda a orla, mês de férias, a orla estava lotada, os morros também estavam iluminados pelo verde e pelo reflexo dourado do sol.
-- Nita, não consigo, não consigo me mover, estou exausto...—seus braços estavam doloridos, machucados, a roupa suada, seu cheiro estava insuportável,  a escalada demorou quase 3 horas, muito vento, um vento inesperado naquele entardecer no Rio de Janeiro.
-- Ele não vai conseguir...molengão, Deus o que vou fazer? – Pensava Anita, seu coração havia disparado, a mochila onde iam também o celular e o rádio comunicador havia caído a mais de 2 horas atrás, o Rio de Janeiro “continuava lindo”, asas deltas no arpoador, o movimento de final da tarde em Copacabana, no Leblon, na Tijuca, o bondinho fazendo suas últimas viagens, tudo na mais perfeita calmaria.
-- Dá a mão rápido, pelo amor de Deus Fábio. Espera! Respira fundo, se segura mais um pouco, depois dessa respirada, você faz um super esforço e tenta esticar o braço – Anita estava deitada, deitada em um vão na parede do lado norte do corcovado, um vâo imperceptîvel,  a escalada foi planejada, cabos de aço e todo o material de segurança checados, ganchos também checados e rechecados, mas o inesperado estava ali presente mais uma vez e por  infelicidade o cabo estourou e um dos ganchos soltou-se e deixou Fábio ali pendurado e beirando o pânico.
-- Nita, lembrei da canção do Chico “Construção, lembra? "Amou daquela vez como se fosse a última..." – Fábio falava misturando um pouco de dor, de gemidos, tentando aparentar a calma que o pânico parecia não querer deixar emergir. – Melhorou Nita, encaixei meu corpo nesse outro  vão aqui e o corpo está doendo menos, só não quero ter cãibras nesse momento, desgraça é ter cãibra.
-- Você tem que sair daí, não tem como a gente pedir socorro, Fábio fica calmo, vai dar tudo certo – Um paraglider  cruzava o céu a cerca de quinhentos metros, a praia vista dali começava a esvaziar-se – Droga! Porque resolvemos escalar hoje, essa droga de tempo também, vira sem avisar ninguém, pode ser o meteorologista do século, que não vai adivinhar  o que se passa com São Pedro  -- esboçou um leve e nervoso sorriso nesse momento.
Fábio fazia nesse momento uma breve reflexão, sua vida passava rapidamente por sua mente, o garoto que o surrava periodicamente em sua escola no primário, sua mãe e sua beleza radiante que o deixava profundamente enciumado, o primeiro LP que comprou, -- a trilha do James Bond e com o Roger Moore – pensou, pensou também na viagem que faria par ao sul no final do mês, os penteados e o vestido vermelho de sua tia, os conselhos de sua avó e também as surras periódicas da velha maldita.
-- Nita, o corpo esta doendo Nita, esta doendo porra. – lágrimas começaram a sair de seus olhos turvos e ardidos, ardidos pelo suor, pelo sol que os havia castigado naquela tarde de novembro, pela mistura com suas lágrimas.
Mais paraglides cruzavam o céu, Anita começou a acenar, de uma maneira desajeitada, pois estava praticamente deitada e encaixada naquele vão na parede norte do Corcovado – Olha aqui, olha moço –  acenava para outro paraglide, as luzes douradas do céu, o azul do mar, o colorido mutante da praia, pequenos pontos brancos ao longe que pareciam gaivotas, surfistas ao longe pegando as últimas ondas do dia,  um perfeito cenário, um perfeito cenário que não combinava em nada com o desespero de Anita e Fábio.
-- Nita, eu não posso me mexer, o corpo dói muito e eu não posso me mexer, acho que de hoje não passo Nita.
Deixa de ser besta Fábio, logo vão dar falta da gente, fé querido, tenha fé – seu corpo também doía, lembrou de Ana, de Isadora, de sua mãe, das pequenas correndo na praia lambuzando-se de sorvete – Mãe, mãe, o moço do sorvete...—lembrou que Isadora era fascinada por doces especialmente por sorvete, por alguns segundos tranquilizou-se, não estava ali pendurada a trezentos e cinquenta metros, estava lá abraçada com Ana e Isadora e lambuzando-se de sorvete.
-- Nita, vou urinar, a bexiga também esta doendo, não estou sentindo as pernas – a urina escorria em um jato forte e quente por dentro de sua calça, o cheiro bateu forte nas narinas de Fábio e também nas narinas de Anita. Ele em um momento de pânico começou a chorar baixinho, lembrou do trabalho, da promoção que iria sair esse ano e de sua mãe e sua eterna “pegaçâo” no pé, lembrou-se da música do Pretenders “Back on the chain gang”, seu choro aumentou, as lágrimas continuaram a escorrer silenciosamente,.
-- Nita, faz tempo que não te digo isso, mas adoro o negro de seus cabelos, adoro seu corpo, seu cheiro, o tom de sua pele, adoro sua boca, Anita acho que não saiu dessa e precisava te dizer isso.
Anita olhou com ternura para Fábio – Fábio tenta ficar em pé, voce tem que sair daí já o outro gancho vai soltar a qualquer minuto, vai devagar, tenta ficar pelo menos de joelho, tenta  dar um pulo que agarro sua mão,  cabe nós dois aqui nesse vão, a gente espera algum resgate, uma hora aparece alguém, tenha calma meu amor.
A noite chegava rapidamente, a lua começava a mostrar seu brilho no céu, a praia começava a esvaziar-se ao mesmo tempo que as luzes começavam como pequenas estrelas a surgir de todos os cantos da cidade.
O braço de Fábio doía muito, estava exausto, Anita já não sabia o que pensar, conseguiu olhar para seu relógio de pulso – oito horas, estamos aqui a pelo menos seis horas, ajuda Senhor.
            Esgotados, ambos estavam esgotados, em Copacabana, os primeiros quiosques e bares noturnos começavam a abrir suas portas, muitos corriam no calçadão, muitos pedalavam, todos sorriam, afinal o dia foi ensolarado e gratificante, carros passavam com seus sons altos, os chopps chegavam gelados em todas as mesas.
            Isadora e Ana começavam a perguntar por sua mãe e por seu pai, Fábio era como se fosse seu pai, o amavam,  mas ao mesmo tempo distraíam-se com a programação de desenhos na tv.  A música chegava alto da rua, o ritmo do funk que sacudia os bairros nos bailes e também em algumas esquinas, a linha Amarela estava interditada, balas perdidas, vitimas inocentes, mais um dia como outro qualquer no Rio, o bondinho enguiçou e seria manchete de jornal no outro dia.
-- Nita esta bem, vou me jogar e tentar pegar sua mão, você é forte, acho que vai conseguir me segurar amada, é nossa única chance, porque não vou aguentar esperar o resgate, não vou aguentar, mas se não der certo...
            -- Vai dar meu bem, fé Fábio, você pede sempre para que eu tenha fé, tenha fé Fábio, vamos vencer mais essa – esfregou suas mãos na calça, percebeu que não adiantou muito pois por mais que as secasse elas permaneciam umidas, seu coração parecia que ia sair pela boca, era agora ou nunca, eles iam sobre viver ou não, era tudo ou nada.
            -- Prepare-se Nita, vou me jogar, você agarra com uma mão e já segura com a outra esta bem? Como naquele curso de resgate que fizemos, lembra?
            -- Sim Fábio, agarro com uma mão e já seguro com a outra, eu sei, eu lembro.
            Fábio começou a levantar-se aos poucos, seu rosto contorcia-se de dor, o cheiro de urina estava forte, seu corpo doía e tremia, conseguiu ficar de joelhos, perfeitamente encaixado na pedra e de joelhos, percebeu que quando ficou de joelhos que nunca conseguiria tomar impulso para lançar-se e agarrar a mão de Anita, aos poucos tentou ficar em pé e esticar o corpo, conseguiu.
            -- É agora Nita, vou me lançar, vai dar certo meu bem, segure firme minha mão, no três esta bem?
            -- No três Fábio. –Fábio lançou-se, sabia que seria sua última escalada e também seu último voo, mas queria ao menos tocar a mão de Anita pela ultima vez, pela ultima vez.
            Começaram a contagem juntos....—um....dois....três – Fábio lançou-se, seu pé falseou, chegou a tocar os dedos de Anita, mas nem ao menos conseguiu se segurar, sentiu pela ultima vez a mão de Anita e seu corpo saiu em um voo vertiginoso e acelerado rente ao corcovado.
            -- Não Fábio, não...—Anita gritou, um grito visceral vindo do fundo de seu peito, vindo do fundo de seu coração, Fábio sumiu naquele voo em meio a escuridão rapidamente, não ouviu nenhum som, não ouviu nada, apenas ele tentando pegar sua mão. Lembrou de tudo que viveram juntos, lembrou do nascimento das meninas, lembrou do dia do casamento,  das flores que ele invariavelmente a presenteava, lembrou do primeiro carro que compraram juntos, lembrou, lembrou, lembrou....e lançou-se também em um voo inesperado, queria estar onde Fábio estava, qualquer que fosse o lugar, sumiu para sempre no meio da escuridão, no mesmo momento suas filhas olhavam pela janela, contando estrelas no céu.
            Nunca mais se soube nada a respeito de Anita e Fábio, os corpos jamais foram encontrados, passaram a fazer parte das estatísticas de desaparecidos.
Nas noites de novembro eles voam juntos de mãos dadas ou escalam aceleradamente a costa norte do Corcovado, jurando um amor eterno que nem o Corcovado ou qualquer força do Cosmos vâo terminar. 

Nenhum comentário: