Lara era loira, simplesmente por isso chamou minha atenção, aliás, como não chamar a atenção em uma classe com duas garotas e cerca de cinquenta marmanjos esquisitos? Quando a olhei pela primeira vez, pensei em como uma garota tão bonita, uma perfeita “modelo” estaria fazendo em uma classe de estudantes de engenharia, onde iríamos simplesmente exercitar a lógica por cinco anos seguidos e de uma maneira totalmente prazerosa, porém enlouquecedor para humanos normais.
-- Acho que não vou aguentar Tato
esse segundo ano, só duas meninas na sala...— Renée era, digamos, o suprassumo
dos nerds, cabelos sempre oleosos, unhas cumpridas e sujas, calças batendo no
meio das canelas e falando com aquele seu sotaque, de um francês que aprendeu
meio que atabalhoadamente o português. – Olha Renée, veja o lado positivo ví muitas meninas lá no pessoal de humanas, tinha loira, morena, para todos os
gostos.
A essa altura do campeonato eu
falava para as paredes, Renée era bom nisso, em lançar sua ideia, em falar sua
necessidade e depois abstrair-se do ambiente.
-- E essa magrela loira e peituda o
que você me diz? Só tem ela e aquela gordinha ali na classe, quem vai
acompanhar a gente nas cervejas?
-- Aula de calculo amigão, trouxe a
calculadora ou esqueceu de novo?
Ser
amigo de Renée, era meio que adotá-lo, porque o pobrezinho perdia tudo,
esquecia tudo, eu já havia suportado meu amigo maluco por um ano, com muito
esforço e boa vontade mas essa minha, digamos, sina, estava em seus limites, será que eu aguentaria por
mais um ano?
-- Posso sentar com vocês? Estou
péssima em calculo e vocês parecem que estado entendendo tudo direitinho. – Seu
riso era um riso escancarado, olhos bem
puxados e os cabelos loiros e longos eram de um amarelo quase que branco. Lara
dos olhos ora verdes, ora azuis. Foi a primeira vez que nos falamos, eu estava
morto, o trabalho na construtora estava me esgotando, encarar ainda uma aula
com o Marques, não era de animar muito, mas lá estava ela, começo de ano, e
havíamos sido premiados pois Lara não se sentava com ninguém, não olhava para
ninguém, era uma moça que permanecia com sua cara de duvida, durante todas as
aulas e eu me divertia um pouco com isso.
-- Bem, eu.... – Ela me olhava
diretamente, e de repente eu não sabia para onde olhar com seus olhos fuzilando
o meu rosto, tentei desviar o olhar, tentei olhar para o chão, para os lados e
ela estava ali impassível, olhando diretamente para mim.
-- Não liga para o Tato não, ele é meio nerd, meio desaparafusado mesmo. – Juntei todo o ódio do mundo e olhei
para Renée e sentí o calor invadir o meu rosto.
-- Meninos, não é nada para
desespero, só quero acompanhar a aula com vocês. – Esse foi o problema, como
acompanhar uma aula com ela sentada ao meu lado? O que ela estaria fazendo alí no meio daquela população de esquisitos, um perfeito ser normal e deslumbrante.
A partir daquele dia, passamos a
sentar juntos, e foi a primeira vez em que quando conseguíamos sair para uma
cerveja (pois todos tinham remorso de divertir-se ao invés de estar estudando),
conseguíamos falar de outra coisa que não fosse a faculdade. Nosso grupo foi
aumentando, aos poucos chegaram Rodolfo, Nei, Fabricio, Charles... então, nos
tornamos meia dúzia de caras esquisitos, com uma bela mascote em nosso meio.
Mascote, acho que não seria o termo mais adequado, vamos dizer “amiga”,
passamos a ter uma bela amiga que irradiava sua beleza em seu um metro e
oitenta de sua simpatia.
Lara, acho que seria uma boa
engenheira, não era uma estudante brilhante, dependia de nós para tudo e passei
horas e horas explicando coisas simples sobre circuitos, automação e eletrônica.
Para ela era uma missão árdua, mas quando ela aprendia, não esquecia mais.
-- Tato, não tenho a facilidade que
vocês tem “bonito”, você tem que ter paciência comigo -- e olhava com aquele
seu olhar encantador. Aos poucos fui me
encantando com seu jeito, com sua atenção, mas o que eu mais observava era sua
educação, o respeito com todos ao seu redor e a leveza de seus gestos e movimentos.
Movimentos
sempre suaves, lentos como se todos os seus gestos fizessem um belo desenho no
ar, como se suas mãos lançassem tintas invisíveis com pincéis também invisíveis
no ar.
-- Pessoal, vai ter uma festa de uma
Barbie da economia, um monte de meninas, vamos todo mundo para lá? – Rodolfo
sempre “gritão” eu ficava irritadíssimo com sua falta de discrição, não sabia
falar baixo, sempre anunciando para todo mundo, o que acontecia – Que merda.
-- Vamos lá Tato? O que você acha? –
Renée, pobrezinho com aquele seu jeito todo desengonçado era louco para
conhecer a vida além de nossa classe, de nosso grupo e de suas fronteiras, mas eu não tinha muita
esperança nisso, ele no momento era um peixinho preso em seu aquário.
-- Vamos “bonito”? – Lara tinha esse
tique, chamava todo mundo de “bonito” até o Firmino nosso professor mais
ranzinza já tinha desistido de corrigi-la, era impossível qualquer coisa que não
fosse de acordo com o que Lara queria, ela tinha esse domínio sobre o ambiente
e sobre todos que não sabíamos explicar.
O pessoal da economia era como
dizíamos na época, “filhinhos de papai”, ou seja, pareciam “riquinhos mimados”
então a casa era em uma rua chique dos Jardins, um bairro para poucos
privilegiados na cidade de São Paulo, casa em estilo colonial, colunas estilo
greco-romana em sua entrada, esculturas de alguns deuses gregos, jardins
imensos e floridos, piscina, chafarizes. Era visível a diferença entre eles e nós. Éramos apenas nós, nossa pequena turma, o restante de nossa classe, literalmente
“torceu o bico” com nosso convite.
Eles chegavam em carros do ano,
roupas bacanas e eram diferentes em comportamento, pareciam irradiar felicidade
e nós, meia dúzia de mequetrefes que já estavam se sentindo uns penetras na
festa, todos de jeans camiseta e mãos timidamente enfiadas nos bolsos.
-- Ela conhece todo mundo? Já
cumprimentou todos da festa? – E você acha que eu não sei Renée, sou um
curioso, quase penetra, como você. Lara ia irradiando seu magnetismo por toda a
festa, atraia os olhares de todos e parecia estar bem com isso. Parecia estar
acostumada a ser uma atração.
A musica estava alta, eu na época
odiava disco-music, e tudo que mostrasse uma alegria transbordante, eu gostava
do alternativo, gostava de estar na contracorrente de tudo, gostava de a meu
modo contestar o establishment
–
Ela dança bem hem Renée? – disse para meu amigo quase cochilando estendido em
um sofá. De nossa pequena turma, ela parecia ser a única que se divertia na
festa, ela dançava e eu a imaginava como minha namorada, mas não tinha muitas
esperanças, afinal Lara parecia ser de todos e no final de ninguém e eu sabia
que ela poderia ter os caras mais bonitos e bacanas que quisesse. Lara, era
alegre e solta, livre para o mundo e para todos, era uma liberdade que nós não
conhecíamos em nosso pequeno grupo, éramos diferentes, em tudo.
-- Que carro apertado Tato bem que
você poderia ter um carro bacana como aqueles lá do pessoal da economia e não
esse Passat velho, não e’? – Eu dirigia, e não dava atenção, Lara cochilou em
meu ombro, sentia sua respiração leve em meu braço, quase quatro da manha,
tinha que ir para o trabalho em três horas, mas isso não me preocupava, me
preocupava, o no’ imenso que estava se formando em meu peito de vontade de
abraçá-la, de abraçá-la e não deixá-la ir, nessa noite eu tinha a certeza que
estava apaixonado por Lara.
-- Já chegamos “bonitão”?
-- Falta pouco Lara, teve um
acidente na Vinte e Três de Maio, mais quinze minutinhos e te entrego sã e salva – Meu sorriso sem graça
e sem sal saiu meio que forçado, ela mostrou seus dentes brancos e perfeitos em
um pequeno sorriso, abriu os olhos sonolentos pela metade e tornou a fecha-los
novamente.
Segurou minha mão, o coração
disparou – Ela deve estar sonhando...
O ano foi passando, Lara me contava
tudo, os namorados, a vida em sua casa, o pai que era diplomata e nunca aparecia
em casa, sua mãe que parecia não existir pois não se importava com nada, o
marido “cachorro” de sua irmã, resumindo, virei o melhor amigo de Lara. Eu nem sei de onde eu tinha tirado esse
pensamento, sei apenas que estava feliz com o que havia conquistado em Lara.
Montamos sem querer a rotina de nosso pequeno grupo, todos saíam juntos, íamos
a eventuais festas, pois não éramos muito festeiros, íamos as vezes a
apresentações de teatro ou musica também
no campus da universidade, eventualmente íamos ao Cepeusp pegar uma
piscina ou correr pelas pistas do campus, estudávamos juntos em semanas de
provas e aos poucos íamos levando a nossa vida.
Em uma das festas conheci Josefine,
aluna de geografia e também muito bonita e pelo que pude perceber por seus
sinais ela também tinha se interessado por mim.
--
Lara, Lara, Lara? Preciso de sua ajuda. – Entrei correndo pela sala, trombei
com duas cadeiras no corredor e iriamos começar mais uma noite de aulas, depois
de atrair a atenção de todos com minha chegada atabalhoada, vi que todos
voltaram a seus afazeres e conversas pré-aula.
-- Fale “bonito”, fale agora ou
cale-se para sempre – abriu um sorriso imenso com seus lábios grossos e seu
riso maroto.
-- Lara, acho que estou gostando de
uma menina da geografia e acho que ela esta também gostando de mim. Você não
quer dar uma sondada para mim? Você que conhece todo mundo?
Seu sorriso fechou nesse momento, ficamos
ali alguns segundos um sentado de frente para o outro, estáticos, nos olhando,
imóveis, ausentei-me do mundo naqueles instantes, não ouvia nada, não via nada,
apenas os olhos estáticos e azuis naquele momento me observando.
Quando julguei que havia “recobrado
minha consciência” perguntei:
--
Lara está tudo bem? Você está bem?
Foi
quando ela em um pequeno sobressalto, abaixou a cabeça e ficou assim por alguns
segundos, pegou seu material e foi embora e os passos que eram lentos tornaram-se passos apressados.
-- Lara aconteceu alguma coisa? Tem
prova de Mecânica na primeira aula, esqueceu? – gritei do fundo da classe.
Em novembro o campus se
transformava, havia uma nova energia no ar, tudo ficava verde e florido,
esquecíamos por alguns momentos que éramos “maquinas de estudar”, nos dávamos
então pequenos prazeres, como após as aulas, principalmente aos sábados,
ficávamos sentados na Praça do Relógio, esperando o por do sol, ou caminhávamos
um pouco pelas ruas do campus procurando alguma barraca de cachorro-quente para
nos deliciarmos um pouco, ou ficávamos
na Educação Física caminhando e brincando entre as árvores.
Lara me evitava de todas as formas,
passou a sentar em outro lugar da classe e eu não sabia se o problema era
comigo ou com nosso pequeno grupo, pois
ela parou de falar com todos.
As
vezes me perguntava se em algum momento havia falado algo errado, se em alguma
festa eu havia bebido demais e feito alguma besteira. Eu era bom nisso, com um
pouco de álcool na cabeça eu já havia feito pequenas besteiras algumas vezes,
nada de absurdo, mas eram coisas anormais em mim.
-- Olha a loira como esta bonita
hoje... – falou Renée bem baixinho em meu ouvido. – Sim, ela estava sempre
bonita, e agora bonita e distante...
Final de mais um ano, nosso segundo
ano de engenharia, tinha mais três anos pela frente, eu refletia se era aquilo
mesmo que eu queria, eu adorava o chão, estar com os pés no chão, por isso
adorava tudo o que eu podia medir perfeitamente, adorava ter o controle das
coisas ao meu redor, adorava esmiuçar alguma coisa e ter seu controle, adorava ter
tudo planejado, começo e fim na ponta de meu lápis, mas era isso realmente o
que eu queria? Meus amigos estavam felizes, sim eu percebia, mais um ano
concluído era mais um dever concluído, mas eu não sabia, não sabia se era isso
o que eu queria, não gostava do meu trabalho, sentia falta de alguém, sentia
falta especialmente de Lara, de seus gracejos, suas piadas sem graça, seu humor
radiante, suas dificuldades em “calculo”, seu perfume, sua elegância. As
flores se abriam, acho que novembro era o mês da primavera, as árvores ficavam
verdes e robustas, a grama do campus mais verde e fofa e no final, todos
estavam mais leves e alegres.
A interrogação sobre Lara ficou em
minha cabeça, na verdade pensava nela todos os dias, todas as noites, demorei a
me acostumar com sua ausência, comecei a
caminhar as tardes, caminhava sem destino, na verdade eu nem percebia qual era
o meu destino, mas as caminhadas serviam principalmente para não pensar em
Lara, eu apenas me focava em planejar minhas coisas para o dia seguinte. Parava
sempre em frente ao prédio da Educação Física, tinha alguns bancos por lá,
sentava e ficava olhando os ciclistas treinando, os pássaros em bando em seus
voos rasantes, as pessoas correndo...
-- Sabia que você estaria aqui Tato
– virei bruscamente, a voz era conhecida, era a primeira vez que ela não me
chamava de “bonito”.
Ela
chegara silenciosamente pelas minhas costas, seus olhos agora verdes com a
penumbra, estavam brilhantes como seu rosto que também brilhava naquela
noite de lua cheia.
-- Tato como estão suas notas de
calculo? – Eu não sabia o que dizer, o coração
disparou, ao mesmo tempo que estava feliz, a insegurança de perde-la novamente
bateu forte – Estão bem, aguardando o próximo ano agora.
Ela me olhou e sorriu, um sorriso
aberto, escancarado, sem o mínimo ruído, meia dúzia de ciclistas passavam
conversando bem alto, um homem correndo quase foi ao chão tropeçando em uma
parte da calçada levantada, uma senhora passava gritando com outra pessoa do
outro lado da rua e as árvores dançavam para lá e para cá, para lá e para cá
com o vento forte.
Ficamos
olhando as árvores dançando, sentí sua mão branca e macia, por cima de minha mão,
sentí seus lábios em meu rosto e sua cabeça encostar em meu ombro, ficamos alí por tanto tempo que perdí a noção do tempo, apenas ouvindo sua respiração, apenas
sentindo seu perfume de patchuli que era sua marca registrada, adormecemos.
Acordei com o barulho das pessoas
chegando no prédio da Educação Física, o barulho dos carros, o sol estava
quente, senti o suor escorrendo por meu rosto quente, olhei para o lado e ela não
estava lá, ela não estava lá e eu senti toda a tristeza do mundo, fora um
sonho, um simples sonho com Lara. Jamais nos falaríamos novamente.
--
Bonito corre aqui, acho que tem uma casa de Joao de Barro naquela arvore ali.
–- Lara sorria e seu sorriso parecia ganhar todo o campus e todo o céu ao redor,
queria correr e abraça-la loucamente e desesperadamente. Queria pedir para ela ficar sempre por perto. – Dá a mão bonito, olha parece que tem filhotes na casa de Joao de Barro.
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