terça-feira, 13 de novembro de 2012

Diário de viagem: Lara que tinha dificuldades com calculo.




                                         

             Lara era loira, simplesmente por isso chamou minha atenção, aliás, como não chamar a atenção em uma classe com duas garotas e cerca de cinquenta marmanjos esquisitos?  Quando a olhei pela primeira vez, pensei em como uma garota tão bonita, uma perfeita “modelo” estaria fazendo em uma classe de estudantes de engenharia, onde iríamos simplesmente exercitar a lógica por cinco anos seguidos e de uma maneira totalmente prazerosa, porém enlouquecedor para humanos normais.

            -- Acho que não vou aguentar Tato esse segundo ano, só duas meninas na sala...— Renée era, digamos, o suprassumo dos nerds, cabelos sempre oleosos, unhas cumpridas e sujas, calças batendo no meio das canelas e falando com aquele seu sotaque, de um francês que aprendeu meio que atabalhoadamente o português. – Olha Renée, veja o lado positivo ví muitas meninas lá no pessoal de humanas, tinha loira, morena, para todos os gostos.
            A essa altura do campeonato eu falava para as paredes, Renée era bom nisso, em lançar sua ideia, em falar sua necessidade e depois abstrair-se do ambiente.
            -- E essa magrela loira e peituda o que você me diz? Só tem ela e aquela gordinha ali na classe, quem vai acompanhar a gente nas cervejas?
            -- Aula de calculo amigão, trouxe a calculadora ou esqueceu de novo?
Ser amigo de Renée, era meio que adotá-lo, porque o pobrezinho perdia tudo, esquecia tudo, eu já havia suportado meu amigo maluco por um ano, com muito esforço e boa vontade mas essa minha, digamos, sina, estava em seus limites, será que eu aguentaria por mais um ano?
            -- Posso sentar com vocês? Estou péssima em calculo e vocês parecem que estado entendendo tudo direitinho. – Seu riso era um riso escancarado,  olhos bem puxados e os cabelos loiros e longos eram de um amarelo quase que branco. Lara dos olhos ora verdes, ora azuis. Foi a primeira vez que nos falamos, eu estava morto, o trabalho na construtora estava me esgotando, encarar ainda uma aula com o Marques, não era de animar muito, mas lá estava ela, começo de ano, e havíamos sido premiados pois Lara não se sentava com ninguém, não olhava para ninguém, era uma moça que permanecia com sua cara de duvida, durante todas as aulas e eu me divertia um pouco com isso.
            -- Bem, eu.... – Ela me olhava diretamente, e de repente eu não sabia para onde olhar com seus olhos fuzilando o meu rosto, tentei desviar o olhar, tentei olhar para o chão, para os lados e ela estava ali impassível, olhando diretamente para mim.
            -- Não liga para o Tato não, ele é meio nerd, meio desaparafusado mesmo. – Juntei todo o ódio do mundo e olhei para Renée e sentí o calor invadir o meu rosto.
            -- Meninos, não é nada para desespero, só quero acompanhar a aula com vocês. – Esse foi o problema, como acompanhar uma aula com ela sentada ao meu lado? O que ela estaria fazendo alí no meio daquela população de esquisitos, um perfeito ser normal e deslumbrante.
            A partir daquele dia, passamos a sentar juntos, e foi a primeira vez em que quando conseguíamos sair para uma cerveja (pois todos tinham remorso de divertir-se ao invés de estar estudando), conseguíamos falar de outra coisa que não fosse a faculdade. Nosso grupo foi aumentando, aos poucos chegaram Rodolfo, Nei, Fabricio, Charles... então, nos tornamos meia dúzia de caras esquisitos, com uma bela mascote em nosso meio. Mascote, acho que não seria o termo mais adequado, vamos dizer “amiga”, passamos a ter uma bela amiga que irradiava sua beleza em seu um metro e oitenta de sua simpatia.
            Lara, acho que seria uma boa engenheira, não era uma estudante brilhante, dependia de nós para tudo e passei horas e horas explicando coisas simples sobre circuitos, automação e eletrônica. Para ela era uma missão árdua, mas quando ela aprendia, não esquecia mais.
            -- Tato, não tenho a facilidade que vocês tem “bonito”, você tem que ter paciência comigo -- e olhava com aquele seu olhar encantador.  Aos poucos fui me encantando com seu jeito, com sua atenção, mas o que eu mais observava era sua educação, o respeito com todos ao seu redor e a leveza de seus gestos e movimentos.
Movimentos sempre suaves, lentos como se todos os seus gestos fizessem um belo desenho no ar, como se suas mãos lançassem tintas invisíveis com pincéis também invisíveis no ar.
            -- Pessoal, vai ter uma festa de uma Barbie da economia, um monte de meninas, vamos todo mundo para lá? – Rodolfo sempre “gritão” eu ficava irritadíssimo com sua falta de discrição, não sabia falar baixo, sempre anunciando para todo mundo, o que acontecia – Que merda.
            -- Vamos lá Tato? O que você acha? – Renée, pobrezinho com aquele seu jeito todo desengonçado era louco para conhecer a vida além de nossa classe, de nosso grupo e de suas fronteiras, mas eu não tinha muita esperança nisso, ele no momento era um peixinho preso em seu aquário.
            -- Vamos “bonito”? – Lara tinha esse tique, chamava todo mundo de “bonito” até o Firmino nosso professor mais ranzinza já tinha desistido de corrigi-la, era impossível qualquer coisa que não fosse de acordo com o que Lara queria, ela tinha esse domínio sobre o ambiente e sobre todos que não sabíamos explicar.    
            O pessoal da economia era como dizíamos na época, “filhinhos de papai”, ou seja, pareciam “riquinhos mimados” então a casa era em uma rua chique dos Jardins, um bairro para poucos privilegiados na cidade de São Paulo, casa em estilo colonial, colunas estilo greco-romana em sua entrada, esculturas de alguns deuses gregos, jardins imensos e floridos, piscina, chafarizes. Era visível a diferença entre eles e nós. Éramos apenas nós, nossa pequena turma, o restante de nossa classe, literalmente “torceu o bico” com nosso convite.
            Eles chegavam em carros do ano, roupas bacanas e eram diferentes em comportamento, pareciam irradiar felicidade e nós, meia dúzia de mequetrefes que já estavam se sentindo uns penetras na festa, todos de jeans camiseta e mãos timidamente enfiadas nos bolsos.
            -- Ela conhece todo mundo? Já cumprimentou todos da festa? – E você acha que eu não sei Renée, sou um curioso, quase penetra, como você. Lara ia irradiando seu magnetismo por toda a festa, atraia os olhares de todos e parecia estar bem com isso. Parecia estar acostumada a ser uma atração.
            A musica estava alta, eu na época odiava disco-music, e tudo que mostrasse uma alegria transbordante, eu gostava do alternativo, gostava de estar na contracorrente de tudo, gostava de a meu modo contestar o establishment 
– Ela dança bem hem Renée? – disse para meu amigo quase cochilando estendido em um sofá. De nossa pequena turma, ela parecia ser a única que se divertia na festa, ela dançava e eu a imaginava como minha namorada, mas não tinha muitas esperanças, afinal Lara parecia ser de todos e no final de ninguém e eu sabia que ela poderia ter os caras mais bonitos e bacanas que quisesse. Lara, era alegre e solta, livre para o mundo e para todos, era uma liberdade que nós não conhecíamos em nosso pequeno grupo, éramos diferentes, em tudo.
            -- Que carro apertado Tato bem que você poderia ter um carro bacana como aqueles lá do pessoal da economia e não esse Passat velho, não e’? – Eu dirigia, e não dava atenção, Lara cochilou em meu ombro, sentia sua respiração leve em meu braço, quase quatro da manha, tinha que ir para o trabalho em três horas, mas isso não me preocupava, me preocupava, o no’ imenso que estava se formando em meu peito de vontade de abraçá-la, de abraçá-la e não deixá-la ir, nessa noite eu tinha a certeza que estava apaixonado por Lara.
               -- Já chegamos “bonitão”?
            -- Falta pouco Lara, teve um acidente na Vinte e Três de Maio, mais quinze minutinhos e  te entrego sã e salva – Meu sorriso sem graça e sem sal saiu meio que forçado, ela mostrou seus dentes brancos e perfeitos em um pequeno sorriso, abriu os olhos sonolentos pela metade e tornou a fecha-los novamente.
            Segurou minha mão, o coração disparou – Ela deve estar sonhando...
            O ano foi passando, Lara me contava tudo, os namorados, a vida em sua casa, o pai que era diplomata e nunca aparecia em casa, sua mãe que parecia não existir pois não se importava com nada, o marido “cachorro” de sua irmã, resumindo, virei o melhor amigo de Lara.  Eu nem sei de onde eu tinha tirado esse pensamento, sei apenas que estava feliz com o que havia conquistado em Lara. Montamos sem querer a rotina de nosso pequeno grupo, todos saíam juntos, íamos a eventuais festas, pois não éramos muito festeiros, íamos as vezes a apresentações de teatro ou musica também  no campus da universidade, eventualmente íamos ao Cepeusp pegar uma piscina ou correr pelas pistas do campus, estudávamos juntos em semanas de provas e aos poucos íamos levando a nossa vida.
            Em uma das festas conheci Josefine, aluna de geografia e também muito bonita e pelo que pude perceber por seus sinais ela também tinha se interessado por mim.
-- Lara, Lara, Lara? Preciso de sua ajuda. – Entrei correndo pela sala, trombei com duas cadeiras no corredor e iriamos começar mais uma noite de aulas, depois de atrair a atenção de todos com minha chegada atabalhoada, vi que todos voltaram a seus afazeres e conversas pré-aula.
            -- Fale “bonito”, fale agora ou cale-se para sempre – abriu um sorriso imenso com seus lábios grossos e seu riso maroto.
            -- Lara, acho que estou gostando de uma menina da geografia e acho que ela esta também gostando de mim. Você não quer dar uma sondada para mim? Você que conhece todo mundo?
            Seu sorriso fechou nesse momento, ficamos ali alguns segundos um sentado de frente para o outro, estáticos, nos olhando, imóveis, ausentei-me do mundo naqueles instantes, não ouvia nada, não via nada, apenas os olhos estáticos e azuis naquele momento  me observando.
            Quando julguei que havia “recobrado minha consciência” perguntei:
-- Lara está tudo bem? Você está bem?
Foi quando ela em um pequeno sobressalto, abaixou a cabeça e ficou assim por alguns segundos, pegou seu material e foi embora e os passos que eram lentos  tornaram-se passos apressados.
            -- Lara aconteceu alguma coisa? Tem prova de Mecânica na primeira aula, esqueceu? – gritei do fundo da classe.
            Em novembro o campus se transformava, havia uma nova energia no ar, tudo ficava verde e florido, esquecíamos por alguns momentos que éramos “maquinas de estudar”, nos dávamos então pequenos prazeres, como após as aulas, principalmente aos sábados, ficávamos sentados na Praça do Relógio, esperando o por do sol, ou caminhávamos um pouco pelas ruas do campus procurando alguma barraca de cachorro-quente para nos deliciarmos um pouco,  ou ficávamos na Educação Física caminhando e brincando entre as árvores.
            Lara me evitava de todas as formas, passou a sentar em outro lugar da classe e eu não sabia se o problema era comigo  ou com nosso pequeno grupo, pois ela parou de falar com todos.
As vezes me perguntava se em algum momento havia falado algo errado, se em alguma festa eu havia bebido demais e feito alguma besteira. Eu era bom nisso, com um pouco de álcool na cabeça eu já havia feito pequenas besteiras algumas vezes, nada de absurdo, mas eram coisas anormais em mim.
            -- Olha a loira como esta bonita hoje... – falou Renée bem baixinho em meu ouvido. – Sim, ela estava sempre bonita, e agora bonita e distante...
            Final de mais um ano, nosso segundo ano de engenharia, tinha mais três anos pela frente, eu refletia se era aquilo mesmo que eu queria, eu adorava o chão, estar com os pés no chão, por isso adorava tudo o que eu podia medir perfeitamente, adorava ter o controle das coisas ao meu redor, adorava esmiuçar alguma coisa e ter seu controle, adorava ter tudo planejado, começo e fim na ponta de meu lápis, mas era isso realmente o que eu queria? Meus amigos estavam felizes, sim eu percebia, mais um ano concluído era mais um dever concluído, mas eu não sabia, não sabia se era isso o que eu queria, não gostava do meu trabalho, sentia falta de alguém, sentia falta especialmente de Lara, de seus gracejos, suas piadas sem graça, seu humor radiante, suas dificuldades em “calculo”, seu perfume, sua elegância. As flores se abriam, acho que novembro era o mês da primavera, as árvores ficavam verdes e robustas, a grama do campus mais verde e fofa e no final, todos estavam mais leves e alegres.
            A interrogação sobre Lara ficou em minha cabeça, na verdade pensava nela todos os dias, todas as noites, demorei a me acostumar com sua ausência,  comecei a caminhar as tardes, caminhava sem destino, na verdade eu nem percebia qual era o meu destino, mas as caminhadas serviam principalmente para não pensar em Lara, eu apenas me focava em planejar minhas coisas para o dia seguinte. Parava sempre em frente ao prédio da Educação Física, tinha alguns bancos por lá, sentava e ficava olhando os ciclistas treinando, os pássaros em bando em seus voos rasantes, as pessoas correndo...
            -- Sabia que você estaria aqui Tato – virei bruscamente, a voz era conhecida, era a primeira vez que ela não me chamava de “bonito”.
Ela chegara silenciosamente pelas minhas costas, seus olhos agora verdes com a penumbra, estavam brilhantes como seu rosto que também brilhava naquela noite de lua cheia.
            -- Tato como estão suas notas de calculo? – Eu  não sabia o que dizer, o coração disparou, ao mesmo tempo que estava feliz, a insegurança de perde-la novamente bateu forte – Estão bem, aguardando o próximo ano agora.
            Ela me olhou e sorriu, um sorriso aberto, escancarado, sem o mínimo ruído, meia dúzia de ciclistas passavam conversando bem alto, um homem correndo quase foi ao chão tropeçando em uma parte da calçada levantada, uma senhora passava gritando com outra pessoa do outro lado da rua e as árvores dançavam para lá e para cá, para lá e para cá com o vento forte.
Ficamos olhando as árvores dançando, sentí sua mão branca e macia, por cima de minha mão, sentí seus lábios em meu rosto e sua cabeça encostar em meu ombro, ficamos alí por tanto tempo que perdí a noção do tempo, apenas ouvindo sua respiração, apenas sentindo seu perfume de patchuli que era sua marca registrada, adormecemos.
            Acordei com o barulho das pessoas chegando no prédio da Educação Física, o barulho dos carros, o sol estava quente, senti o suor escorrendo por meu rosto quente, olhei para o lado e ela não estava lá, ela não estava lá e eu senti toda a tristeza do mundo, fora um sonho, um simples sonho com Lara. Jamais nos falaríamos novamente.
            -- Bonito corre aqui, acho que tem uma casa de Joao de Barro naquela arvore ali. 
–- Lara sorria e seu sorriso parecia ganhar todo o campus e todo o céu ao  redor,  queria correr e abraça-la loucamente e desesperadamente. Queria pedir para ela ficar sempre por perto. – Dá a mão bonito, olha parece que tem filhotes na casa de Joao de Barro.

Nenhum comentário: